terça-feira, novembro 13, 2007

Egoísmo - A Última Fronteira


Segunda feira. 12 de novembro. São 12:30 .

Chego em meu consultório e uma senhora com idade para ser minha avó me aguarda na porta.

Na verdade ela é a mãe de uma paciente. Uma paciente que eu atenderia em casa horas mais tarde.

Atenderia porque ela não pôde mais pagar.

E esse foi o recado que a ‘vózinha’ veio me trazer.

Que o responsável pelo pagamento do tratamento dela não dispunha mais de condições e que infelizmente, teriam que interromper o tratamento.

Tratava-se de uma doença degenerativa. A ponto da paciente de pouco mais de 40 anos não conseguir vir sozinha ao consultório.

Com expressão desconsolada expliquei à senhora que ali estava (não menos doente – a coluna completamente torta como que um S) que eu também tinha outros compromissos a honrar, e que na verdade estava indo no sacrifício (por ‘módicos’ 50 reais, claro...)
atender sua filha em casa, visto que àquela hora (depois das oito da noite) eram momentos que eu reservava à família.

A anciã desculpa-se por não poder manter o tratamento, me deseja sorte, vira-se e vai embora.
Fechei a porta atrás dela e comecei a arrumar meu ambiente de trabalho para que os pacientes ‘pagantes’ pudessem confortavelmente chegar.
Fim do primeiro ato.

****


Isso simplesmente podia ter encerrado por aí. E creio que tenha encerrado para a vovó.
Mas não para mim.
Coloquei-me o dia todo para pensar...e as dualidades existentes dentre de cada um de nós começaram a entrar em conflito.

- Puxa vida...eu podia ter ido atender aquela paciente. Já atendo tanto pobre mesmo....ia ser mais uma.

- Ah, mas peraí Herege...tu não quer carregar as chagas do mundo nas costas né....caramba véio....tu num acha que já atende pobre demais sem cobrar porra nenhuma? Ela vai dar o jeito dela...fica tranqüilo.

- Sim, mas era só mais meia horinha.....eu ia lá....atendia, tomava um cafezinho, assistia ao Jornal Nacional enquanto isso....e depois ia pro aconchego do meu lar. Sem os cinquentinha habituais, claro....mas iria feliz por ter sido útil.

- Pô, Herege, larga de ser prego.....teu atendimento é secundário ao problema da pessoa. Ela não tem cura, cara....o que tu fazia era uma parada paliativa mesmo. Aposto que ela não vai nem sentir falta...

- Sim, mas então porque que eu cobrava 50 reais pra atendê-la já que é isso aí que você falou?

Fim do segundo ato.

****

Porque o ser humano é um ser egoísta por natureza. E eu sou um ser humano.

Qualquer animal (eu disse qualquer) não faria o que eu fiz ontem. E cada vez que me lembro disso me sinto um pequeno verme.

Quando criança eu gostava muito de observar formigas.
Formigas são seres a princípio desprezíveis perante a ‘realeza’ humana.
Mas eu observava que as formigas meio que ‘se cumprimentavam’ quando passavam umas pelas outras. Eu entendia aquilo como uma linguagem entre elas.

Uma outra ocasião matei uma formiga com a ponta do dedo e fiquei observando.
Cada vez que uma passava pelo cadáver, parava.....outras vinham.....igualmente paravam.....até que haviam varias em volta. No final se juntavam e a carregavam pra dentro de algum buraco que eu não sabia onde iria dar.

Pensei: ah, são da mesma família....estão carregando o corpo. Nós humanos fazemos parecido.

No outro dia fiz diferente.

Matei outra formiga e levei pra longe. Botei o cadáver perto de outras formigas.
Não eram mais da mesma família. E o mesmo fenômeno ocorreu.

Enquanto isso, nós humanos passamos pela rua e vemos pessoas semimortas pelas calçadas e não fazemos absolutamente nada.

O degradante passa a ser racionalmente aceitável quando aplicado em doses homeopáticas diariamente ao longo dos anos.

O absurdo torna-se lugar comum quando ingerido em doses leves e cotidianas.

A pobre doente abandonada por mim (sim, eu a abandonei porque ela não podia mais me pagar) vai realmente acabar se virando. Sabe-se lá como, mas vai.
E eu nunca mais vou poder reclamar de um dedo cortado sequer por toda a minha vida.

- Mas Herege, o que você queria? Quer acabar com as doenças do mundo sozinho? Tu não é Deus, cara....

Não, seu arrombado...eu só queria ter mais caráter e vencer a última barreira. A barreira do egoísmo.

Todos os dias pensamos unicamente em nosso próprio umbigo.
Queremos ter prazer. O ser humano é um buscador do prazer.
E por buscar sempre, se torna um insaciável.
Tudo aquilo que não lhe massageia o ego não é seu objeto de consumo.

A dor da pobre Alice (vamos chamá-la assim) não é nada perto do meu prazer de chegar logo em casa, abrir minha cerveja holandesa e tomar em goles gelados assistindo em um bom canal as notícias do dia depois de um árduo dia de trabalho.

Nem a dor dela nem a de ninguém.

E não adianta pensarmos que já fazemos a nossa parte pelo mundo.
Creio que basta fazermos a nossa parte para destruir tudo.

Aí depois você toma o seu banho morno....em pé....se ensaboa, se enxágua...e lembra da coitada da Alice que mal consegue mover a mão pra levar o cigarro até a boca (sim, ela fuma).

Tomei meu banho e fiquei observando meu filho. Uma criança. Uma cruel criança.

Sim, toda criança tem a crueldade encarnada.

Ora, quando eu tinha 4 anos de idade apanhei pela única vez da minha mãe quando ao receber em casa um amigo negro de meu pai, disse na cara dele que duvidava que fosse amigo de verdade do meu pai....Pois amigos do meu pai eram brancos e usavam terno e gravata.

Aquela era a maneira como uma criança via o mundo. Uma forma crua. E não a que a sociedade posteriormente me “ensinou” hipocritamente a fazer.

Meu filho quando quer se alimentar, ele chora...Chora alto...Grita na verdade...E foda-se quem estiver fazendo alguma outra coisa. Ele não sabe pedir “por favor...” ele ainda não aprendeu as regrinhas sociais.

Talvez mais tarde, ele também aprenda a rejeitar a Alice como paciente por ela não poder pagar. Afinal, é comum. Faz parte dos costumes sociais.

O homem foi e voltou à Lua. Ta quase achando água em outros planetas. Construiu estações espaciais....Mas continua sem dar de comer a alguns semelhantes.

No fundo, eu posso muito bem achar apenas o seguinte: Alice ta doente e sem grana? Isso é problema dela e do governo...Meu não! Pago meus impostos em dia e não fui eu que a botei daquele jeito.

Mas aí é onde entra a pergunta que não quer calar.

Estamos vivendo para que e por que?

Será que a sina e trilha diária do ser humano é comer, cagar, trepar, beber, comer de novo, trepar, cagar de novo, dormir, comer mais uma vez, trepar, mijar (to cagando mais que mijando, mas tudo bem...), dormir e acordar pra começar tudo de novo?

Sim, vivemos sem saber para que e por que e isso é a causa de eu não atender a pobre Alice.

Raciocine comigo: se eu sei a razão do meu viver, eu atenderia a pobre Alice. Ou não!
E se não atendesse, igualmente saberia porque não atendi e não estaria agora enchendo o seu saco com essa matéria idiota.

Talvez vivamos para derrubar a ultima barreira e para desbravar a ultima fronteira...A do egoísmo.

Na verdade vivemos para e pelo ego. Quando acaba a busca do ego, perde-se quase a vontade de viver.

A questão toda talvez se resuma em como dosar esse venenoso remédio que nos leva ao abismo e ao estrelato.

O egoísta é alguém desprovido de consideração pelo egoísmo dos outros, isso é um fato.

O egoísmo é por si só desrespeitoso visto que despreza todo sentimento de comunhão com o semelhante.

A paciente Alice é apenas mais uma. Eu apenas a eternizei aqui como um exemplo e não como um mártir.

Ela vai continuar em sua cadeira de rodas, porque o Herege, embora envergonhado de sua condição humana, não vai voltar lá e fazer o que deveria (?) ser feito.

Alice em meio a toda a sua “inutilidade social” de deficiente física pelo menos conseguiu ser mais um tema do Blog do Herege.

E talvez tenha feito o seu papel.

Muito mais que aqueles que andam, tomam seus banhos sozinhos, comem, cagam, mijam, trepam...e que pagam seus terapeutas sem precisar que os mesmos abram mão de seus próprios anseios e caprichos.

Esse post é dedicado a todos aqueles que um dia conseguirem mudar um pouco sua maneira de ver e tratar o mundo. E, principalmente, o seu semelhante.




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